[Casos e acasos] Bilhete de loteria

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- Todo dia é sempre igual...

A mulher pragueja, peleja. Ele, uma vontade sobre-humana de que o teto caia sobre sua língua. "Ainda precisa das mãos para cozinhar".

Jornal, realidade estampada a olhos vistos, a quem quiser ver. Pois bem, ele não quer. Vindo a aposentadoria no início do mês, a comida na hora que sente fome e as camisas lavadas e passadas, tudo certo. Nunca precisou mais que isso; a mulher, um presente dos anos de esforço. Agora, um presente de grego. Rugas, varizes, os quilos que ela tenta perder com dietas estúpidas. Ela, estúpida. Filhos, para conter a ânsia familiar de rebentos, herdeiros, molecotes puxando estilingue para matar pássaro.

Uns ingratos. Velho como estava, doía-lhe andar, pensar. Meninos, - ainda se houvesse uma menina para cozinhar! - hoje homens. Bestas. Um metido a idealista, outro a intelectual, outro a aventureiro. Basta casar, que o ciclo casa-mulher-trabalho tomava conta de suas cabeças e esqueciam que existia aquele pai, de idade avançada. Nem pros jogos de domingo aparecem mais. Nenhum agradeceu todos os anos aguentando o sol forte, a luta diária, os insultos, o puto do patrão. Não, eles não reconheceriam nem se esfregasse em seus rostos. Droga, a mulher não desliga a televisão. Antes lesse. Antes a realidade escrita do que vista.

- Mas você não pod...

- Shhhh! Vão anunciar o número da loto!

Não bastasse a comida na hora errada, a patacoada pseudojornalística, agora gastava o dinheiro que não tinham na loteria. Queria dinheiro, que trabalhasse! Não que tivesse acumulado muito. Mas era o suficiente para ter algum conforto. Se ela pensava que iria usar seu dinheiro desta forma, estava muito...

- Ganhei! Ganhei! Dois milhões e seiscentos mil acumulados!

A mulher, esquecendo a dor nas costas e as varizes, pulava. Não. Não poderia ter acontecido com eles.

- Ora, o que é isso? Ganhei, ganhamos! Comemora! Isso nunca aconteceu, talvez não aconteça nunca mais. Deus finalmente ouviu minhas preces...

Ele, antes cético, estava boquiaberto. Ele, milionário? José. O nome nem combinava com o título. Ouviu tantas vezes e agora, José?, em tom de brincadeira. Ele se fazia a pergunta de outrora. E agora?

A mulher ignorando o entrave em que se encontrava o cônjuge, ainda estava em êxtase. Ele a observou, demoradamente. Ainda persistia – ainda que pouco – aquilo que vira na companheira, quando eram moços. Os cabelos castanhos, quase pretos, balançando a cada impulso que dava para um novo salto, os dentes imaculadamente brancos, os olhos de um azul-céu. Sim, ela era bonita, à sua maneira. E era sua. Apenas sua, ainda que cozinhasse diferente do modo que gostava. Porém, isso seria resolvido quando contratassem uma empregada, daquelas de cama, mesa e banho.

Cama...

- Repetindo: quatro, nove, oito, três, nove, cinqüenta e seis.

- Cinqüenta e seis?

O olho da mulher escureceu. Ele piscou.

- O que tá nesse bilhete?

- Quarenta e seis.

Pronto. A atmosfera psicodélica, de felicidade e otimismo, desapareceu. De repente, os dentes da mulher voltaram a ser amarelos, os cabelos esbranquiçados e os olhos, azul-desbotados. A empregada foi-se para um universo qualquer. E a comida, essa sim ficaria pior do que nunca nesta noite.

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